As vezes eu fico tão cansada, tão cansada, tão cansada, que até esqueço do resto todo.
Esqueço que tenho que colocar os remédios de mamãe no correio, por que senão a dor na perna piora. E tenho que colocar também os laudos, a carteira de trabalho e tenho que ligar no 135 e agendar a perícia lá, em Piracicaba. É , não posso esquecer de avisar a moça do 135 que é perícia em trânsito. Preciso lembrar e lembrar e lembrar. É, não posso esquecer. Não posso. Preciso perguntar pra mamãe se o psiquiatra escreveu as coisas que eu deixei anotadas, no laudo, pro médico que a moça do 135 vai marcar.
Mas é que eu ando cansada. Não ando. Só cansada. E então não posso esquecer que a cachorra quase cadeirante amor da minha vida toda toma seis remédios. Tem dois de oito em oito. Não posso esquecer de colocar o relógio pra despertar as duas. Não posso, não posso e não posso. Esquecer de nada. Lembrar de tudo. E sempre e sempre e sempre. Sexta tem consulta. E choro. Eu choro e choro e choro. Dói. A veterinária fala coisas que eu finjo que não entendo. E atendo o celular, e falo com todo meu advogadês lindo. Mas é fuga. Só fuga. Eu fujo por que não quero saber daquilo tudo que ela fala. Mas eu sei. E ai dói. E então eu volto pro celular, pra algum cliente, pra algum agravo, pra qualquer recurso. É, não posso esquecer. Sexta tem consulta. As oito. No morro. Mas eu nem tenho mais medo de subir de moto no morro. Já sei subir. Eu e o amor da minha vida toda. Minha cadela que não anda.
Cansada. Eu ando. Não. Não ando. Só cansada mesmo. Sem verbos e movimentos. Cadê o cartão ponto do processo do seu João? Tá, tudo bem, não tem. Qual é a proposta então? Tá, não tem também. As vezes eu esqueço que trabalho para empresas. E elas nunca tem nada, nunca sabem de nada. Não, não seu João. Não esqueci do Senhor. Mas eu esqueço de tudo. Mas do sr. eu não esqueci. Nem do remédio da minha mãe pelo sedex. Nem da consulta da Jade, na sexta. No morro. Pois é seu João. A empresa não tem proposta. É, eu sei. Eles nunca tem. Não seu João, não posso ligar pro sr. É falta de ética. Só seu advogado pode. Eu sou advogada da empresa seu João. É eu entendo. Tá certo. Na verdade eu não entendo nada, só disse que entendia por que tô cansada. E amanhã terei esquecido de vc por que preciso lembrar do sedex da minha mãe e da consulta da Jad as 8 no morro que não tenho mais medo.
Oi amor. Foi bom. A Jade tá bem. Tá indo. Tô com saudade. A fatura do cartão. O demonstrativo da sua mãe. Não, não posso esquecer. Tirar dinheiro amanhã. Buscar o documento também. E não pode ser em horário de almoço. Por que tá fechado. Eu lembro, eu sempre lembro de coisas pra você. Levar as roupas velhas e cobertores e coisas e tudo pra doar. O sofá aqui da sala não me deixa esquecer. Sim, vamos colocar no porta malas. Levamos tudo. É, fica lá mesmo. Não, não posso esquecer. O sofá, as roupas, as cobertas e meu frio. É, tenho que lembrar de comprar lençol. Não tenho mais lençol. Tem feito frio. E comprar meias. Preciso de meias novas. E uma havaiana. Que a minha eu perdi. Não, não esqueci dela. Só perdi. E perder é melhor do que esquecer. Perder é desculpável. Esquecer não. Não lembrar não. Eu sou chata, velha e perfeccionista. Tenho que lembrar de tudo sempre. Mas é que eu ando cansada. Não. Andar é verbo e movimento. Eu prefiro calmaria.Coisa de gente cansada. mas não tanto. Ainda sobra tempo pra ser feliz.
Amanhã eu preciso lembrar só de duas coisas: Comprar um caixa bem grande de sucrilhos e colocar o pacote na bolsa e comer escondida durante todo meu dia. Mesmo que pareça coisa de maluca. Mesmo que eu tenha plena certeza que estou pesando 415 kilos a mais por isso. Não tem importância. Será que cabe na bolsa? Se não couber eu troco. Não tem importância também. Só quero o sucrilhos lá. Por que ele tem o efeito do celular no meio da consulta. Felicidade sem anfetamina.
A outra coisa eu esqueci. Mas amanhã eu lembro. Tenho que lembrar. Não posso esquecer. Nem que eu lembre, anote e perca o papel. Por que perder eu posso. Esquecer é que não.